Jorge Adalberto Aziz da Silva
Geógrafo, ex-aluno do Instituto de Geociências

O território não é o espaço em si, mas a significação do espaço.
(Vilém Flusser, O Mundo Codificado)

A geografia crítica deixou de pensar o território como um simples dado físico delimitado por fronteiras. Passou a encará-lo como campo de forças, palimpsesto político, narrativa em disputa. O território é uma construção social, mas também simbólica, técnica, narrativa e sensível. A territorialidade, por sua vez, é o modo como os corpos, os afetos, os signos e os sistemas habitam, disputam e narram o espaço.
Este capítulo articula a dimensão material e simbólica da territorialização, incorporando a crítica tecnocultural de Vilém Flusser e a leitura das ficções organizadoras do poder em Yuval Harari.

1. Território: do traço à inscrição
Deleuze e Guattari afirmam que o território não é delimitado pela cerca, mas pelo ritmo do animal que percorre, canta, marca — ou seja, territorializa. O território é inseparável da expressão: os povos o marcam com danças, grafismos, palavras, mapas, normas.

Milton Santos reforça essa ideia ao tratar o território como instância do uso, não da posse: o território é onde o poder se efetiva, mas também onde o povo resiste.

O território é a casa e o trabalho, o caminho e a memória.
(Milton Santos, A Natureza do Espaço)

2. Territorialidade: ritmo, afeto e agenciamento
A territorialidade é o como se vive o território: é o gesto territorializante. É o que distingue o território da pura extensão.

  • Nos fluxos migratórios urbanos: a criação de espaços afetivos precários.
  • Nas territorialidades indígenas: o espaço como corpo, como ancestralidade.
  • Nos mapas digitais: territorialidades algorítmicas, que nos localizam sem nos pertencer.

Doreen Massey, em sua crítica à linearidade do espaço-tempo moderno, propõe que o território seja pensado como um entrelaçamento de trajetórias, como um evento mais do que uma substância.

3. Vilém Flusser: superfícies, códigos e o mapa como ficção técnica
Flusser propõe que o mundo contemporâneo é mediado por superfícies codificadas. Os mapas, imagens, diagramas e grafos são tecnologias de inscrição que codificam o espaço e o tornam operável, manipulável, vendável.

O mapa não representa o mundo. Ele o simula.
(Vilém Flusser, Filosofia da Caixa Preta)

O território, nesse sentido, não é mais um chão, mas uma interface programada. A territorialidade torna-se uma questão de código, de design de superfícies. Os sistemas de georreferenciamento (GIS, GPS, drones) constroem territorialidades invisíveis, controladas por bancos de dados e algoritmos.

4. Yuval Harari: as ficções do território
Harari, em Sapiens e 21 Lições para o Século 21, argumenta que os territórios nacionais são ficções compartilhadas. O Estado-nação se mantém porque acreditamos nele, porque há narrativas que sustentam a soberania, os mapas, as bandeiras, os hinos.

O mundo é governado por ficções que organizam bilhões de vidas.”
(Yuval Harari)

A territorialidade, então, é também linguagem e crença. A propaganda nacionalista, a cartografia colonial, os discursos securitários: tudo isso performativiza o território, mesmo quando sua materialidade está em ruínas.

5. As novas territorialidades: algoritmos, redes e fraturas
No século XXI, as territorialidades se tornam ainda mais complexas:

  • Territórios digitais: espaços de poder invisíveis (metadados, firewalls, zonas de exclusão cibernética).
  • Territórios corporativos: infraestrutura de empresas que ultrapassam os Estados (Google Earth, Amazon Web Services, Elon Musk).
  • Territórios da exclusão: favelas, campos de refugiados, zonas de sacrifício ambiental — territórios da exceção (Agamben).

A geografia, nesse cenário, precisa ser ontopolítica: revelar as territorialidades que escapam à cartografia oficial.

6. Conclusão: Cartografar é Contar uma História
O território não é o mapa. É a história que se escreve contra o mapa. A geografia crítica é, por isso, um campo de narrativas dissidentes. Uma ciência que se abre à filosofia, à literatura, à arte — porque os territórios não são apenas porções de terra, mas mundos em disputa.

Cartografar é resistir.
Territorializar é afirmar a vida.
Desenhar mapas é escolher o que visibilizar — e o que apagar.

Referências:
Deleuze & Guattari – Mil Platôs
Milton Santos – Por uma Outra Globalização, A Natureza do Espaço
Doreen Massey – For Space
Vilém Flusser – O Mundo Codificado, Filosofia da Caixa Preta
Yuval Harari – Sapiens, Homo Deus, 21 Lições para o Século 21

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